A agenda reformista do Banco Mundial para a saúde pública: um breve histórico e as novas propostas ao sistema único de saúde (SUS) brasileiro
DOI:
https://doi.org/10.14295/jmphc.v11iSup.713Resumo
Os sistemas de saúde pública dos países centrais foram afetados pela crise do Estado de Bem-Estar Social, a partir dos anos 1970, acompanhada por uma onda de proposições reformistas associada ao estabelecimento de um ambiente institucional favorável à relação custo-benefício, tendo como objetivo a eficiência dos prestadores de serviços de saúde. Neste contexto, o Banco Mundial destacou-se como instituição disseminadora de uma agenda social compatível com diretrizes neoliberais. Os objetivos deste trabalho são: i) recapitular algumas questões levantadas pelo Banco nos anos 1990, voltadas aos países subdesenvolvidos como um todo, e ao Brasil em particular; ii) demonstrar qual é a visão contemporânea do Banco em relação ao SUS brasileiro; iii) instigar algumas questões sobre as potencialidades e as limitações dessa nova perspectiva. Para isso, foram revisados oito documentos do Banco, sendo que quatro deles dirigem-se aos países subdesenvolvidos em geral (1987, 1993, 1997 e 2000), e quatro deles dirigem-se ao Brasil (1991, 1995, 2017 e 2018). O Relatório de Desenvolvimento Mundial Investing in Health, de 1993, marcou a entrada definitiva da instituição no setor de saúde. Desde então, o discurso do Banco gira em torno da eficiência nos sistemas de saúde, medida por indicadores econométricos. Desta forma, propõe-se que o Estado privilegie a provisão de serviços de larga escala, que maximizam a relação custo-eficiência, como programas de vacinação, planejamento familiar e prevenção de doenças contagiosas. Essas políticas deveriam ser focalizadas nas populações pobres, deixando que os demais procurem assistência privada, o que implica transferir um grande volume de serviços ao setor privado de saúde, em especial os de média e alta complexidade. Durante os anos 1990, a agenda do Banco propôs, em termos gerais: i) o Estado mais regulador e menos provedor direto de serviços; ii) a concorrência entre os serviços públicos e privados de saúde, que poderiam impulsionar a eficiência geral na área da saúde; iii) iniciativas estatais favoráveis à oferta e à demanda do setor privado, como subsídios e incentivos fiscais; iv) transferência de serviços para o setor privado, lucrativo ou não, por meio de privatizações e parcerias; v) comprometimento do Estado com um pacote de serviços públicos básico e focalizado nos mais pobres. Essa agenda tornou-se hegemônica, em termos técnicos e políticos, no mercado global de ideias para a saúde, e foi dirigida ao Brasil logo após o surgimento do SUS. A publicação de 1991, Brasil: novo desafio à saúde do adulto, já trazia a visão que seria consolidada mundialmente pelo Banco em 1993. Além das recomendações já descritas, o Banco demonstrava especial preocupação com a aprovação recente do Sistema Único de Saúde, que se comprometeu a prover a todos os cidadãos assistência à saúde universal, pública e gratuita. Essa preocupação foi enfatizada em 1995, no texto A organização, prestação e financiamento da saúde no Brasil: uma agenda para os anos 90, que dizia não ser possível cumprir a promessa de universalidade. O documento recomendou a criação de um pacote mínimo de benefícios universais, incentivos fiscais para seguros privados, ampliação da compra de serviços privados pelo Estado, transferência da prestação de serviços para a iniciativa privada e criação de mercados internos dentro do sistema público. Além disso, houve a sugestão de copagamento no sistema público pelos usuários que tenham acima de um determinado nível de renda. O SUS não absorveu toda a agenda, mas, dentre as recomendações adotadas, destacamos duas. A primeira foi transferência da gestão de serviços públicos para associações privadas sem fins lucrativos, facilitada e ampliada após a introdução das Organizações Sociais de Saúde, fruto da Reforma do Estado de 1995. E foram implementados incentivos fiscais, com renúncias, presunções creditícias e isenções, em favor de pessoas físicas beneficiárias de seguros privados, pessoas jurídicas que contratam seguros empresariais, empresas farmacêuticas, e entidades sem fins lucrativos. Os diagnósticos sobre o SUS nas duas publicações recentes (2017 e 2018) mantêm-se baseados nos cálculos de eficiência, não supõem o aumento no orçamento do sistema e afirmam que o SUS pode fazer mais com o mesmo volume de recursos. O Banco defende a implementação e integração das Redes de Atenção à Saúde (RAS), bem como a centralidade da atenção primária na estruturação do sistema. Porém, entende que a ampliação dos serviços deve ocorrer sob gestão privada, e que a esta seja garantida mais autonomia. Defende que se ampliem as atribuições dos profissionais não-médicos, muitas monopolizadas pelos médicos, e recomenda o pagamento por desempenho. Também reconhece a regressividade do Gasto Tributário e a necessidade de reduzi-lo. Por fim, propõe interação entre o modelo público e o privado suplementar, em termos de regulamentação do duplo emprego, fluxo conjunto de informações, ressarcimento quando pacientes segurados são atendidos no SUS, e aproximação entre os modelos de atenção. O Banco levanta questões importantes, sobre as quais enxergamos algumas potências e alguns riscos. A ampliação da autonomia dos enfermeiros tem um potencial interessante se aliada ao trabalho multiprofissional, com conhecimento compartilhado. Caso contrário, trata-se apenas de sobrecarregar uma categoria e condicioná-la a metas abusivas, o que se complica em caso de pagamento por desempenho. É um problema também compreender a produtividade a partir do número de consultas realizadas, o que não implica imediatamente em qualidade e resolutividade. A integração das RAS é necessária, mas a gestão privada dos serviços pode agravar a fragmentação e a evasão de recursos. É ainda mais urgente a ampliação das RAS nos interiores dos estados e territórios pobres, onde o setor privado sempre demonstrou pouco interesse. Quanto à redução do Gasto Tributário, seria ideal que isso levasse à ampliação de recursos no SUS, o que não é previsto pelo Banco. E, por fim, a aproximação entre os modelos de atenção do SUS e do setor suplementar, tendo em vista o contexto político recente, é motivo de alerta porque pode acarretar perdas em termos de acesso universal, integralidade e equidade, como concebidas pelo SUS. Em conclusão, algumas dessas medidas poderiam ser proveitosas se pensadas sob um olhar amplo do sistema, com ambiente regulatório rígido e favorável ao SUS, e com o reconhecimento de que o orçamento do sistema não é suficiente.
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