A saúde pública no Brasil em tempos de austeridade
desfinanciar e repassar à gestão privada – a lógica sobre os hospitais universitários
DOI:
https://doi.org/10.14295/jmphc.v15.1382Palavras-chave:
Políticas de Saúde, Hospital Universitário, Economia e Organizações de Saúde, Gestão em SaúdeResumo
O Sistema Único de Saúde – SUS, apesar de sua proposta progressista enquanto saúde pública, contraditoriamente, nasce em período de restrição econômica, conforme as orientações internacionais de enxugamento do gasto público, em prol do pagamento da dívida pública. O reflexo dessas medidas sobre o SUS aponta para restrição de recursos, com impactos na cobertura, na oferta e na manutenção do serviço de saúde como espaço público e gratuito. As diretrizes de universalidade e integralidade se colocam ameaçadas pela lógica da saúde como mercadoria e oferta de serviços mínimos, como determina a cartilha neoliberal. Temos como exemplos recentes de atos de austeridade, a Emenda Constitucional (EC) 93/2016, EC-95/2016 e o Programa Previne Brasil, lançado em 2019. A EC-93, lançada por Michel Temer, após o golpe de destituição da presidenta Dilma Rousseff, ampliava o prazo e percentual da Desvinculação das Receitas da União, garantindo maior “fatia” dos recursos públicos para o pagamento da dívida pública. A EC-95, também em 2016 e pelo mesmo governo de Michel Temer, institui um novo regime fiscal, onde estabelece “tetos” para os gastos sociais para os próximos 20 anos. A EC-95, como medida de articulação com o capital internacional, reflete no mercado de planos privados que seguiam em desaceleração econômica frente ao período de recessão. Não sendo possível investimento público que ampliasse os ganhos do empresariado da saúde, o capitalismo é chamado à sua reinvenção com busca por um novo nicho de acumulação – aqui a atenção primária ganha atenção do sistema econômico e o Estado, na sua relação orgânica com o capital, traça novo modelo de financiamento dessa esfera da saúde, o Programa Previne Brasil. Este, em consonância com o direcionamento dos relatórios do Banco Mundial, deturpa a lógica da atenção primária e universalidade em saúde. O novo financiamento sob os critérios de captação ponderada, pagamento por desempenho e incentivo a programas específicos, reduz o financiamento, antes sob a forma per capta a partir da população total do município. Na nova proposta os valores de repasse serão ponderados a partir do número de pessoas cadastradas na Unidade de Saúde e inseridas em programas de renda mínima - uma relação a partir da pobreza e da focalização do cuidado. Uma proposta movida pelo desempenho individual, numa lógica gerencialista, sob o discurso da eficiência e racionalização dos serviços. As estratégias neoconservadoras, balizadas pelo gerencialismo, apontam para o processo antes de subfinanciamento e agora de desfinanciamento da saúde, com progressiva retração de financiamento para a saúde. Paralelo e aliado a esse cenário cresce a exaltação ao sistema privado de saúde. O consumo de planos, convênios e seguros, a compra particular de serviços na área e a participação de empresas privadas na prestação de serviços públicos se ampliam exponencialmente a partir da crença hegemônica de melhor eficiência, rapidez e até mesmo qualidade. A gestão privada ganha os adjetivos de eficiente, ágil, e desburocratizada - ao passo da especulação de um serviço público sem verbas, sem gestão e sem credibilidade. A lei orgânica da saúde permite espaço para a permanência da rede privada no cenário público. Outras regulamentações se apresentam como “novas soluções” para “melhora” do desempenho da saúde pública. Nesse panorama as redes de filantropia, fundações e organizações sociais se fortalecem como melhores formatos de gestão da saúde. Atualmente, os três níveis de atenção à saúde já possuem experiências a partir da gestão privada - seja na contratação de recursos humanos, gestão de órgãos e instituições, pactuação de procedimentos ou terceirização das atividades. O Estado repassa ao setor privado atividades que constitucionalmente são de sua responsabilidade. A saúde pública perde sua natureza de direito e paulatinamente passa a ser encarada como despesa. É sob essa conjuntura que os hospitais universitários, enquanto ponto de atenção na rede de saúde pública, são atingidos pela lógica privatizante do modelo neoliberal. O enxugamento das despesas sociais impacta também nos hospitais de ensino - dado sua complexa engrenagem, movida por diferentes atores e frentes de atuação. Surgidos como espaço de formação para os profissionais de saúde e depois inseridos no sistema de saúde pública, essas instituições permanecem numa longa trajetória de gestão dúbia entre Ministério da Educação e da Saúde. Numa complexidade de atores, interesses, intervenções e subfinanciamento, os hospitais universitários vivenciaram nas últimas duas décadas um processo de precarização estrutural, subfinanciamento e déficit de recursos humanos. Era o preparo do terreno fértil para o plantio de estratégias “salvadoras” na gestão de instituições públicas ineficientes e custosas ao Estado. E assim em 2010, se aprova medida legal que entrega a gestão dos hospitais universitários para a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH. O que se colocava em pauta era a entrega de dezenas de hospitais para gestão de empresa pública de capital privado. Sob o discurso de melhor competência na gestão e maior facilidade para os trâmites de compras de insumos e contratações de pessoal, os hospitais universitários são lançados aos ditames empresariais e a gestão pública cede lugar para o gerencialismo da saúde. As implicações que a gestão EBSERH traz aos hospitais universitários ocorrem em áreas distintas, como financiamento, ressarcimento ao SUS, contrato com as universidades, cessão de servidores, controle social, recursos humanos, processo formal de decisão, e, impactos sobre a formação dos profissionais de saúde, considerando seu papel de ensino. O contexto apresentado fala das marcas que o processo de austeridade neoliberal tem deixado nos anos mais recentes, sobretudo nos países periféricos e dependentes da economia das “grandes nações”. Um processo de austeridade que fala de taxas e percentuais, mas não fala de cuidados, direitos e acesso universal. Um processo que descarta o SUS em prol do lucro e da acumulação. Um processo que merece e exige o debate no intuito de revelar os reais interesses da política estabelecida, marcando quem ganha e quem perde nessa relação.
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