Estado, direito, capitalismo e saúde
revisão de escopo sobre cuidado em vulnerabilidade social durante a pandemia de COVID-19 no Brasil
DOI:
https://doi.org/10.14295/jmphc.v15.1372Palavras-chave:
Organização Comunitária, Vulnerabilidade Social, Sistema Único de Saúde, Atenção Primária à SaúdeResumo
O cuidado como objeto de pesquisa requer a observação das repercussões da desigualdade social, acirradas pela pandemia de COVID-19 e pela gestão da necropolítica até 2022. Esse contexto afetou o cuidado nos territórios em vulnerabilidade social em todo o país, como pudemos observar na grave situação dos territórios indígenas Yanomami. Os territórios em vulnerabilidade social foram duramente atingidos pelos cortes na saúde pública e nas políticas sociais, desde a Emenda Constitucional n. 95, em dezembro de 2016, o que se acirrou pelo contexto sindêmico, com a chegada da COVID-19, agregada à gestão governamental bolsonarista. O cuidado exercido por lideranças comunitárias e profissionais da Atenção Primária em Saúde – APS do Sistema Único de Saúde – SUS, nesses territórios, carece ser melhor investigado, considerando a sindemia, a necropolítica até o fim de 2022 e a transição atual, de forma crítica em relação ao Estado enquanto forma, ao sistema capitalista, ao sistema de garantia de direitos (SGD) e ao cuidado. O objetivo foi compreender o cuidado em territórios em vulnerabilidade social, no contexto sindêmico, relevando a organização comunitária, os processos intersubjetivos, afetivos e os vínculos envolvidos. O método abarca uma revisão de escopo orientada pela ferramenta Preferred Reporting Items for Systematic Reviews with Extension for Scoping Reviews – PRISMA-ScR10 (principais itens de relatório para revisões de escopo), realizada em janeiro de 2023 a partir de estudos primários qualitativos com pesquisa participante. Esse método foi escolhido para mapear a literatura sobre cuidado em territórios em situação de vulnerabilidade no Brasil durante a COVID-19. A estratégia de busca foi o População Conceito e Contexto – PCC (População: lideranças comunitárias e profissionais da APS do SUS; Conceito: cuidado; e Contexto: Unidades de Saúde e territórios em vulnerabilidade social no Brasil). Para o rigor científico em pesquisas qualitativas, fizemos a triangulação com os seguintes instrumentos: 1) Assessment of Multiple Systematic Reviews – AMSTAR (avaliação de revisões sistemáticas) para verificar a qualidade dos estudos; 2) Guia de Extração de Dados de Estudos Qualitativos; e 3) Enhancing the Quality and Transparency of health research – EQUATOR (aprimoramento da qualidade e da transparência da pesquisa em saúde). Os estudos incluídos na revisão de escopo foram trabalhados no software Atlas T.I., que possibilitou o mapeamento temático. A hermenêutica de profundidade foi usada para estruturar as análises: sócio-histórica, discursiva e interpretação/ reinterpretação. Para análise crítica, realizamos a triangulação dos referenciais teóricos da psicologia social marxiana, da ética feminista do cuidado e da decolonialidade, por meio do materialismo histórico-dialético e do derivacionismo. O mapeamento se deu a partir de estudos primários publicados entre 2020 e 2023 e trouxe temas que foram agrupados em duas vertentes: fragilidades e potencialidades. Nas fragilidades, os resultados indicam que as formas como o cuidado foi afetado e as reações a ele variaram em cada território, porém, o espectro sindêmico com a presença da pandemia e do acirramento das graves consequências do sistema de exploração foi comum a todos, produzindo o aumento de: bolsões de pobreza – historicamente ainda não reparados –, fome, violências, sofrimentos, adoecimentos e mortes. O cuidado é um desafio desde o colonialismo e coloca em evidência a ineficiente e, por vezes, perversa atuação do Estado, cúmplice do capitalismo, com diversas dificuldades para efetivar o SGD, as políticas públicas sociais e de saúde. Nas potencialidades, o cuidado construído comunitariamente parece ser uma potente ferramenta, com possibilidades emancipatórias da forma Estado e do sistema capitalista-neoliberal que reproduz desigualdades sociais. Os resultados apontam para a resistência criativa da luta de classes, liderada pelas mulheres negras, indígenas, líderes comunitárias, agentes comunitárias de saúde e demais profissionais da APS do SUS, nos territórios estudados, por meio da valorização e compreensão de aspectos da intersubjetividade manifestados pelo sentimento do comum, do acolhimento, da percepção de comunidade e da politização do cuidado em, contra e mais além do Estado. Mobilização por cestas básicas, Equipamentos de Proteção Individual – EPI para a população e para os profissionais de saúde; campanhas locais organizadas pelas comunidades para o uso de máscaras feitas por elas mesmas e para vacinação contra a COVID-19; WhatsApp para denunciar violência doméstica, compartilhar atividades escolares e consultas médicas; hortas comunitárias, entre outras, foram ações que promoveram o cuidado e a segurança da vida local. As considerações finais apontam para a importância de se considerar a relação entre o SUS e a organização das mulheres desses territórios. O processo de politização do cuidado, balizado por categorias ético-político-decoloniais, pode fomentar a elevação dos saberes e modos de vida criados para a vivência em meio a tantas adversidades, e ainda contribuir para a emancipação da forma Estado e a superação do sistema capitalista. A participação social, os vínculos fortes, a intersubjetividade e a afetividade são potentes ferramentas nesse enfrentamento, inclusive para o fortalecimento da frente interdisciplinar e do tripé ensino, pesquisa e extensão na atuação nas Unidades de Saúde. A consciência do papel do Estado dentro do sistema capitalista nos provoca a refletir criticamente sobre os contornos que vão além da coalizão jurídica, política e econômica da classe dominante. A defesa do SGD é essencial; porém, as mulheres apontam que precisamos avançar para além do Estado, pois ele não alcança esses territórios e, quando alcança, é por vezes de forma violenta ou hierárquica, colocando a epistemologia e os modos de vida em um lugar subalternizado. Valorizar o cuidado praticado pelas mulheres desses territórios, enquanto produtoras de epistemologias, métodos e vivências, significa ampliar formas para transformações estruturais e emancipatórias.
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