Concepções de equidade em saúde para a população em situação de rua
primeiros resultados de uma revisão crítica
DOI:
https://doi.org/10.14295/jmphc.v14.1256Palavras-chave:
Equidade em Saúde, Pessoas em Situação de Rua, Pensamento, Economia e Organizações de SaúdeResumo
A noção de equidade apareceu nas sociedades modernas como síntese entre as ideias de justiça e igualdade. Enquanto conceitos essencialmente políticos, a equidade e sua negação, a iniquidade, representam um determinado posicionamento sobre o processo de produção, distribuição e consumo dos bens materiais em cada período histórico. O pensamento econômico em saúde incorporou a equidade como princípio que ordena a alocação de recursos a partir das necessidades de determinado grupo populacional, em geral recorrendo aos conceitos de “equidade vertical” (desigualdade entre desiguais) para o financiamento e de “equidade horizontal” (igualdade entre iguais) para o acesso e utilização dos serviços de saúde. A equidade aparece como um dos princípios da Política Nacional para a População em Situação de Rua, política pública instituída em 2009 que garantiu, pela primeira vez no Brasil, o acesso equitativo da população em situação de rua no Brasil aos direitos sociais, ao mesmo tempo em que também contribuiu para reiterar a negação do acesso dessa população ao direito constitucional à moradia. No âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, essa política significou uma reação à iniquidade na assistência e no acesso aos serviços de saúde pela população em situação de rua, adotando medidas focalizadas como meio para atender algumas das necessidades de saúde dessa população, entretanto sem romper com os interesses das classes dominantes, especialmente no setor imobiliário. Entende-se que há duas concepções relevantes e concorrentes no debate sobre a equidade em saúde para a população em situação de rua: a concepção liberal, apoiada na teoria da justiça formulada por John Rawls e efetivada em estratégias de focalização das ações e serviços de saúde; e a concepção crítica, fundamentada no materialismo histórico e concretizada na produção e distribuição da saúde a partir do princípio marxista: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades”. Dessa forma, manifesta-se a necessidade de analisar as produções científicas que tratam sobre a equidade em saúde para a população em situação de rua, examinando os posicionamentos dessas concepções em relação à estrutura e dinâmica econômica, a determinação do processo saúde-doença e o acesso às ações e serviços de saúde. O presente estudo consiste em uma revisão crítica da literatura que busca responder à seguinte pergunta: “o que a literatura científica apresenta sobre a equidade em saúde para a população em situação de rua?”. O objetivo geral da pesquisa consiste em caracterizar a concepção político-filosófica de equidade em saúde expressa nos artigos científicos sobre a população em situação de rua, tendo como objetivos específicos: a) identificar a aplicação do conceito de “equidade em saúde” na literatura sobre a população em situação de rua e b) analisar os fundamentos da aplicação desse conceito a partir das principais correntes do pensamento econômico. A metodologia de pesquisa iniciou-se com a identificação de dois itens-chave da pergunta de pesquisa - “equidade em saúde” e “população em situação de rua” - dos quais derivaram-se os descritores a partir dos termos presentes na plataforma Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), sendo organizados junto aos operadores booleanos na seguinte sintaxe de busca em português: (“Equidade” OR “Equidade em Saúde” OR “Equidade no Acesso aos Serviços de Saúde” OR “Estratégias para Cobertura Universal de Saúde” OR “Equidade vertical”) AND (“Pessoas em Situação de Rua” OR “Jovens em Situação de Rua”). A sintaxe foi traduzida para inglês e espanhol a partir dos descritores correspondentes nesses idiomas, culminando em três sintaxes que foram operadas em quatro portais de busca: 1) Biblioteca Virtual em Saúde – BVS do Ministério da Saúde do Brasil, 2) PubMed®, 3) Scientific Electronic Library Online (SciELO) e 4) Scopus®. A busca ocorreu no dia 07 de março de 2022, sendo identificadas 1.704 publicações indexadas nas bases de dados. As recomendações para revisões sistemáticas focadas na equidade em saúde presentes no Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-analysis (PRISMA-E 2012) orientaram o momento seguinte da metodologia. As publicações incluídas na estratégia inicial (n = 1.704) foram avaliadas pelo programa Zotero® para exclusão de itens duplicados (n = 329) e de publicações que não são artigos científicos (n = 175); em seguida, foram avaliados os títulos de 1200 publicações por meio do aplicativo Rayyan, adotando-se como critérios de inclusão a presença de itens-chave no título (n = 306) e a relação com o tema da pesquisa (n = 149), selecionando 455 publicações para leitura dos resumos; por fim, 36 publicações foram incluídas devido à relação com o tema e 4 foram incluídas por meio de pesquisa retrospectiva na lista de referências, resultando em 41 publicações para leitura na íntegra, das quais 5 estavam indisponíveis para leitura na íntegra. Foram incluídas 35 publicações na revisão da literatura, elaborando-se quadro-síntese a partir de três elementos consoantes aos objetivos de pesquisa: a) autores, ano e periódico de publicação; b) concepção de equidade em saúde; e c) posicionamento sobre a equidade em saúde para a população em situação de rua. Os resultados preliminares revelam que 31 publicações (88,6%) se fundamentam na concepção liberal de equidade em saúde, com as seguintes aplicações da noção de equidade na área da saúde: equidade na alocação de recursos (n = 5), equidade na assistência à saúde (n = 8), equidade no acesso aos serviços de saúde (n = 16), estratégias de eSaúde (n = 1) e intervenções baseadas em equidade (n = 1). Em contrapartida, a concepção crítica de equidade em saúde está presente em apenas 4 publicações (11,4%), aplicando a noção de equidade na área da saúde a partir de sua determinação estrutural (n = 3) e do acesso aos serviços de saúde (n = 1). Dessa forma, os primeiros resultados da revisão crítica de literatura permitem concluir que prevalece a concepção liberal de equidade em saúde nas publicações científicas sobre a população em situação de rua, concepção que contribui para a difusão do pensamento econômico neoclássico no campo da economia da saúde, para a naturalização a-histórica da “situação de rua” no modo de produção capitalista e para a negação do acesso a moradia enquanto direito humano fundamental.
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